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O dia que fugi de casa



O dia já amanhece quando acordo, viajamos a noite inteira a caminho de Cuiabá e agora o ônibus serpenteia pela serra de São Vicente. Florestas de babaçu me fazem sentir que estou mesmo longe de casa. Aqui não existem bois pastando e em minha ruminagem meu estômago arde só de pensar no que não sei que me espera. Será que ele vai me reconhecer quando me ver? E se ele não se lembrar como será a boca do mundo que se abre pra mim agora?
Me mastiga? Me engole viva?
A beira da estrada aquela gente oferecendo pequi, palmito de babaçu. Me faz lembrar minha avó. Como pode gostar de algo tão amargo? Gueroba....como diz ela. A esta hora ela já deve estar acordada e nunca mais vai me ver...num volto mais lá...

Começo a avistar as placas grandes com as propagandas de caminhões anunciando a chegada na cidade, to chegando... to chegando... E quando chegar? Sei que ele mora perto da igreja em cima do morro. Será que ele ainda estará lá?

Antes de decidir pra onde vir, cheguei à rodoviária fazendo mamãe mandou e meu coração me mandou aqui.
O conheci em Barra do Garças em uma noite que eu e Lu pulamos a janela e fugimos. Era aniversário da cidade e fizemos pra ela uma serenata do alto do Cristo. Estávamos no céu e ele uma estrela na terra. Nos beijamos no desajeito da primeira vez e eu sai correndo pra não ser pega pelo dia claro fora da cama de onde havíamos fugido. Nunca mais o vi.
O ônibus parou. Cheguei em Cuiabá e era hora de apear. Meus pés me derramaram escada abaixo. A rodoviária era longe do centro da cidade e arrodeada de barracas que vendiam comidas, bebidas, jacas, jabuticabas, pequis e mangas que iam espalhando os cheiros que se empreguinariam em mim pra sempre.
Eu ainda tinha algum dinheiro e fui procurar o ponto de ônibus. Me vi andando pela cidade, o céu muito azul, o sol estatelado enquenturando ainda mais o que já ardia misturado de medo e certeza...
Em setembro fiz 14 anos e era tudo que eu trazia comigo. Na bolsa tinha algum vestido que peguei escondido de minha prima e cigarros. Minha avó havia pelejado com toda força pra me tornar uma moça boa. Boa pra casar, ter filhos. Pra ter uma vida diferente de suas filhas, que foram mães solteiras de outras filhas, inclusive eu. Filha de mãe solteira que pra não continuar mãe solteira casou-se com o primeiro que a reivindicou de seu abandono. Abandonou-se ela dela mesma e morreu quando eu ainda tinha 5 anos desenganada pelo amor que sentira pelo homem que de mim a engravidou e pensara ter morrido quando sumiu e pelo médico que não soube diagnosticar o diabetes que ela adquiriu durante a minha gestação.
A fábula em que João e Maria encontravam uma casa feita de chocolate na floresta soava em mim como soava na estória a cabaça com a promessa do retorno de seus pais que nunca chegaram. Ela chega ao final e eu imaginando como seria impossível a vida deles naquela floresta. Era só uma história e agora eu estava ali.

O lugar para onde eu estava indo ficava no alto do Rosário, um dos casarios antigos que guardavam a Igreja de São Benedito e também o velho estilo Cuiabano de colocar a porta da sala na calçada. Entre as outras casas esta era diferente, tinha um recuo com uma porta em frente, a outra na lateral direita e um pequeno portão cinza na altura da minha cintura. Tirei a tramela, entrei e bati na porta da frente. Bati mais duas vezes até que surgiu uma sombra atrás da porta de vidro.
Ele abriu a porta, me olhou e fechou a porta rapidamente num susto!
Abriu a porta de novo e me disse num sorriso nervoso:
- Você?
- Eu fugi de casa e vim
Ele abriu a porta inteira pra eu entrar sem saber se era mesmo isso que deveria fazer. Havia um sofá e a sala era de um formato singular, ia afinando pra porta que dava em um corredor, passava pelo banheiro a direita e finalmente para o quarto com uma janela com vista para outro cômodo adiante. Haviam tantas coisas em volta de sua cama, cacareco de ventilador, centenas de bilhetes e poesias espalhadas pelas mesas e escritos nas paredes, tocos de cigarros, bitucas amontoadas em cinzeiros. Um caos maior do que o que se instalara em mim se apresentava na casa daquele moço tão doce. Fazia muito calor e eu sentia muito sono. Me deitei na cama dele e dormi o sono de quem finalmente reencontra a si.


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